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Arco histórico Other languages Português

[Caderno] Marx em onze pontos

Tradução parcial para o português do nosso caderno Marx em onze pontos de “Miguel Arthur”. O .pdf pode ser baixado aqui.

Materialismo histórico

A reflexão teórica de Marx se contrapõe às visões idealistas (de tradição hegeliana) que explicam a realidade a partir da primazia do Espírito e as ideias, mas também às visões materialistas para as quais não existe história (um dos grandes méritos de Hegel para Marx). Nestes trechos das Teses sobre Feuerbach, pode-se ver muito bem como Marx critica um materialismo contemplativo, o de Feuerbach, do qual não existiria história e, portanto, mudança.
Para Marx, a essência humana não é um a priori eterno, mas o resultado das relações sociais que os seres humanos estabelecem entre si para transformar a natureza e reproduzir sua vida em comum. Existe um relação metabólica entre o ser humano e a natureza. Uma relação de dupla direção, transformando a natureza, os seres humanos mudam também a si mesmos. Dizer que a essência humana é o conjunto das relações sociais implica, pois, uma crítica a uma ideia eterna e a priori do que são os seres humanos. Estamos submetidos a constantes mudanças, mas sempre a partir de um fundamento constante e contínuo: somos seres comunitários que desenvolvemos relações sociais para transformar a natureza e reproduzir nossa vida.
É partindo deste ponto de vista que deve se entender a famosa frase contida na última tese sobre Feuerbach. Os filósofos se dedicaram a interpretar o mundo, mas trata-se de transformá-lo: a reflexão de Marx nunca está separado do mundo em que vivemos. Não existe um sujeito e, logo, o mundo, o ser humano participa dentro do mundo, é mundo, não há separação entre sujeito e objeto, e a função da teoria deve ser a da transformação mundana. No caso do tempo de Marx, isto implica uma transformação revolucionária que elimine os fundamentos da alienação do trabalho e da alienação humana e desenvolva uma sociedade comunista. Em um texto da época já indicava que a verdadeira essência humana é a Gemeinwesen (a comunidade humana): ou seja, uma sociedade sem classes sociais e Estado. Desde 1843-44, Marx estabeleceu de modo claro as finalidades do que seria uma sociedade comunista.

“[I] O defeito fundamental de todo o materialismo anterior — incluído o de Feuerbach — é que só concebe as coisas, a realidade, a sensibilidade, sob a forma de objeto ou de contemplação, mas não como atividade sensível humana, não como prática, não de um modo subjetivo. Daí que o lado ativo fosse desenvolvido pelo idealismo, por oposição ao materialismo, mas somente de um modo abstrato, já que o idealismo, naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como tal. […]
[VI] Feuerbach dilui a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é algo abstrato inerente a cada indivíduo. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não se ocupa da crítica desta essência real, vê-se, portanto, obrigado:
1) A fazer abstração da trajetória histórica, focando para si o sentimento religioso (Gëmut) e pressupondo um indivíduo humano abstrato, isolado. […]
[XI] Os filósofos não fizeram mais que interpretar de diversas formas o mundo, mas o que importa é transformá-lo”. (Teses sobre Feuerbach, 1845)

Alienação do trabalho

Marx trabalhará em alguns Manuscritos em Paris durante o ano de 1844. Permanecerão esquecidos durante quase um século, não se imprimiram até 1932, e, no entanto, nos permitem entender aspectos nodulares de sua crítica social. Antes de tudo, sua crítica à alienação do trabalho nas sociedades de classe e, é claro, no capitalismo. Marx dos termos em alemão que em espanhol se traduzem igual (alienación ou enajenación) [alienação ou estranhamento]. Por um lado, Entfremdung (indica alienação entre pessoas) e Entäuserung (alienação entre pessoas e coisas). Para Marx, a alienação do ser humano implica, então, vários elementos. Por um lado, alienação com os produtos do trabalho, alienação com os outros seres humanos, com a própria atividade e prática e, portanto, com nossa própria essência como seres humanos, com nosso ser genérico (Gattungwesen). Algumas citações nos permitem entender isto.

“O objeto que o trabalho produz, seu produto, se apresenta a ele como um ser estranho, como um poder independente do produtor”.

Alienação em relação ao produto que não nos pertence, veremos esta ideia muito mais desenvolvida em sua perspectiva madura do fetichismo da mercadoria.

“O operário é mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais cresce sua produção em potência e volume. O trabalhador se converte em uma mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadorias produz. A desvalorização do mundo humano cresce em razão direta da valorização do mundo das coisas”.

Empobrecimento humano, ao se mercantilizar a força de trabalho e valorização do mundo das coisas.
“Até agora consideramos o estranhamento, o estranhamento do trabalhador, somente em um aspecto, concretamente em sua relação com o produto de seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra só em resultado, mas no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador encarar o produto de sua atividade como algo estranho se, no próprio ato da produção, não se fizesse já alheio a si mesmo? O produto não é mais que o resumo da atividade, da produção. Portanto, se o produto do trabalho é o estranhamento, a própria produção deve ser o estranhamento ativo, o estranhamento da atividade”.

Como podemos ver nestas citações, para Marx, a alienação não é um problema de consciência ou de perspectiva ideológica. A alienação é um fato objetivo. O ser humano se encontra separado dos produtos de seu trabalho e de sua humanidade. Por isso, a resolução da alienação humana não passa por um processo subjetivo, de reflexão interior, mas por uma revolução material que implicará também uma profunda transformação subjetiva. E é que o ser humano não se encontra estranhado somente de seus objetos, mas de sua própria atividade, de seu ser genérico, de sua capacidades e faculdades.

Marx se inserta em uma larga tradição que vê o ser humano como um ser ativo e comunitário, pensemos na filosofia grega e em Aristóteles especificamente. O conceito de alienação encontra-se vinculado ao de essência humana, mas uma essência que, como já vimos, não é a-histórica, mas se realiza em comunidade e na transformação da natureza com os outros, para reproduzir todos os aspectos indissociáveis da vida (o amor, a cultura, a arte, o ser em comunidade…). A antropologia de Marx, seguindo Feuerbach, é sensual ou empírica. Os seres humanos somos seres corpóreos, dotados de sentidos, e seres pensantes, com capacidades abstratas. Ambos os aspectos não são separáveis ou alienáveis em Marx, fazem parte de nossa natureza, e ambos são necessários na expressão de nosso ser como espécie, como seres humanos, no processo de transformação com a natureza. Os seres humanos somos, do início ao fim, seres ativos que interagimos entre nós, em um contínuo de atividade e passividade. Com nossa atuação, mudamos a realidade e ela própria nos muda, muda nossa realidade e a dos demais. A sociedade produz o ser humano e a própria sociedade é produzida e reproduzida por ele. Esta perspectiva é muito importante para entender três ideias de Marx:
As sociedade de classe e, sobretudo, o capitalismo, implicam a alienação de nossa atividade e faculdades específicas como seres humanos. Alienação significa perda daquilo que nos é conatural como seres humanos, a capacidade de nos expressarmos em comum, com a natureza, para reproduzir nossa vida. Toda a obra de Marx gira ao redor desta problemática, explicar a razão histórica da alienação do trabalho e como acabar com ela. Uma contradição enre natureza e sociedade.
O ser humano é um ser comunitário, a essência da espécie é a comunidade (Gemeinwesen) e a realização de um ser genérico (Gattungwesen) que implica o desenvolvimento e a aplicação prática e comum de nossas faculdades como seres humanos. Em Marx, indivíduo e comunidade se complementam reciprocamente. Sem comunidade, não existe personalidade humana, mas a personalidade humana não pode se desenvolver fora da comunidade, daí sua feroz crítica ao individualismo e à atomização burguesa.

Estes aspectos nos permitem entender melhor a perspectiva antropológica que subjaz no comunismo de Marx. O capitalismo implica a alienação de nosso ser genérico, ativo (Gattungwesen) e de nosso ser comunitário (Gemeinwesen). O comunismo é uma luta para realizar nossa natureza.

Marx crítico da democracia como ser do capital

Os lugares comuns, alimentados pelas instituições escolares, associam Marx com a defesa da política e do Estado. Nos dizem que, para Marx, a revolução consiste em se apropriar do Estado e colocá-lo ao serviço dos trabalhadores. Pois bem, a realidade de seu pensamento é muito diferente. Já desde a sua juventude, quando se aproxima do movimento comunista nos anos 1843 e 1844, nos mostra com veemência que a revolução política é uma revolução parcial, insuficiente, tipicamente burguesa, e que por isso mesmo cristaliza uma nova opressão. A respeito disto, seu texto Sobre a Questão Judaica é paradigmático. Nele, polemiza Bruno Bauer, um jovem hegeliano de esquerda e democrático que faz coincidir a emancipação humana com a emancipação política, com o desenvolvimento de um Estado laico que separe religião e Estado, fazendo da religião um fato privado e lutando para conseguir um Estado de direito que estabeleça uma igualdade entre todos os cidadãos. Como dizíamos, a reação de Marx não poderia ser mais furiosa e profunda. Vislumbra-se veementemente a perspectiva humana radical do comunismo. Em primeiro lugar, realiza uma crítica contundente dos direitos humanos, uma ficção que iguala os seres humanos no céu da política, enquanto na vida material o que rege realmente são os antagonismos sociais:

“Os droits de l’homme, os direitos humanos, distinguem-se como tais dos droits du citoyen, dos direitos civis. Qual é o homme a quem aqui se distingue do citoyen? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. E por que se chama o membro da sociedade burguesa “homem”, o homem por excelência, e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar este fato? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política.

Registremos, antes de tudo, o fato de que os chamados direitos humanos, os droit de l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, não são outra coisa que os direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade.”

Ou seja, os direitos humanos não são senão os direitos dos membros da sociedade burguesa, do ser humano atomizado e separado do resto dos seres humanos e de sua comunidade (Gemeinwesen). O capitalismo, com seu processo de expropriação e cercamentos das terras, gera este processo que se sintetiza na aparição do proletariado, que só dispõe de sua força de trabalho. Os direitos do homem e do cidadão pressupõem esta realidade material e a reproduzem. Pressupõem a existência da sociedade de classes. Novamente Marx:

“Nenhum dos chamados direitos humanos vai, por tanto, além do homem egoísta, do homem como membro da sociedade burguesa, ou seja, do indivíduo retraído em si mesmo, em seu interesse privado e em sua arbitrariedade privada, e dissociado da comunidade (Gemeinwesen). Muito longe de conceber o homem como ser genérico (Gattungwesen), estes direitos fazem aparecer, pelo contrário, a própria vida genérica, a sociedade, como um marco externo aos indivíduos, como uma limitação de sua independência originária. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta”.

A revolução política não é senão uma revolução parcial, que não vai à raiz: uma forma que oculta, sob o céu abstrato da política, os antagonismos sociais entre as classes. Uma forma política que nos aliena de nossa humanidade. Por isso, só uma revolução social, radical, de espécie, é o caminho:

“A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa, ao indivíduo egoísta independente, e, por outro, ao cidadão do Estado, à pessoa moral.

Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem reconheceu e organizou suas forças próprias como forças sociais e quando, portanto, não desprende de si mais a força social sob a forma de força política, só então se leva a cabo a emancipação humana”.

A revolução social e humana a que Marx aposta não é senão uma revolução proletária, cujo fim é a abolição de todas as classes sociais, para afirmar a comunidade humana. Em um texto contemporâneo, Para uma Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, expressa-se com clareza:

“Na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa, de um estamento social que é a dissolução de todos os estamentos sociais; de um setor que obtém de seus sofrimentos universais um caráter universal e não alega nenhum direito especial, pois não padece de uma injustiça social, mas a injustiça em si, que já não pode recorrer a um pretexto histórico, mas a um pretexto humano que não se encontra em contradição particular com as consequências, mas em uma universal contradição com as premissas de ordem pública alemã; de um setor, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todos os demais setores da sociedade e sem emancipá-los por sua vez; significa, em uma palavra, que a perda total do homem só pode ser recuperada com a completa recuperação do homem. Esta dissolução da sociedade, na forma de um estamento especial, é o proletariado”.

O proletariado é um protagonista desse movimento real que é o comunismo, não em nome de sua perpetuação como classes especial, mas ao contrário, em nome de sua dissolução e da última das sociedades de classe, a capitalista. E o faz não em nome de uma proclamação abstrata, mas por sua própria existência material, encarnação de um sofrimento universal. O proletariado, através de sua luta, abre o caminho a uma sociedade verdadeiramente humana, livre de exploração e opressão.

“Quando o proletariado anuncia a dissolução de toda a ordem até agora existente, expressa apenas o segredo de seu ser, posto que este é a dissolução prática daquela ordem de coisas”.

E é que, como dirá com força alguns meses mais adiante, em um dos textos mais emblemáticos e importantes escritos por nosso companheiro, Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um Prussiano”:

“Mas não será verdade que todas as rebeliões, sem exceção, explodem no isolamento funesto dos homens do ser coletivo (Gemeinwesen)? Toda sublevação não pressupõe necessariamente este isolamento? Teria lugar a Revolução de 1789 sem este funesto isolamento dos burgueses franceses do ser coletivo? Estava precisamente destinada a suprimir este isolamento. Mas o ser coletivo (Gemeinwesen) de que o trabalhador se encontra separado é um ser coletivo de realidade distinta, de distinto alcance que o ser político. O ser coletivo do qual seu próprio trabalho o separa é a própria vida, a vida física e intelectual, os costumes humanos, a atividade humana, o gozo humano, o ser humano. O ser humano é o verdadeiro ser coletivo (Gemeinwesen) dos homens”.

Marx argumenta aqui a partir de uma revolta proletária de sua época, a dos tecelões da Silésia. Toda revolução proletária expressa uma alma universal. É o segredo do ser do proletariado, pois é uma revolta contra o isolamento da comunidade humana. Por isso, a revolução proletária se expressa do ponto de vista da totalidade, como negação deste mundo (revolução política) e como afirmação da comunidade humana, do ser humano, da espécie (revolução social). Esta afirmação não é um resultado de ideias ou de um dever ser, mas da necessidade do proletariado para afirmar seus interesses humanos, para libertar-se do estranhamento e da alienação que o capitalismo implica. A negação deste mundo, por parte do proletariado, implica a afirmação de uma comunidade humana universal e a dissolução de todas as opressões. Obviamente, isto não supõe a desaparição de todos os conflitos humanos, não significa, para Marx e nem para os comunistas, uma provação perfeita, mas simplesmente a desaparição das causas estruturais da opressão.

Em síntese, durante estes textos, Marx distingue claramente entre revolução política e revolução social. Marx nos diz em seu texto das Glosas Críticas que toda revolução é política porque acaba com o antigo poder e é uma revolução social porque dissolve a antiga sociedade. Ora, o motor do comunismo é a revolução social:

“A revolução em geral — a derrocada do poder existente e a supressão das antigas relações — é um ato político. O socialismo sem renovação não pode se realizar: tem necessidade desse ato político na medida em que tem necessidade de destruição e de dissolução, mas onde começa sua atividade organizadora e onde surgem o objetivo e o espírito que lhe são próprios, o socialismo recusa sua aparência política”.

Por outro lado, a separação entre sociedade e política, entre a economia capitalista, com sua exploração, e a igualdade cidadã, própria do céu da política, é a separação que se dá na própria sociedade capitalista. Ambos os lados da separação são inseparáveis e indissociáveis. O capitalismo é mercantil e jurídico por essência. Os indivíduos que entram em relação entre si para trocar mercadorias (o trabalhador com sua força de trabalho, o burguês que a demanda), expressam depois seu poder soberano nas eleições políticas como indivíduos iguais. Ainda que suas condições materiais sejam antagônicas (entre um burguês e um proletário). Esta é a ficção que reproduz os direitos humanos e a democracia. Uma ficção bem real porque responde à natureza da sociedade capitalista. Sobre estas ideias, com mais força e contundência teórica, voltará Marx em O Capital ao falar sobre o fetichismo da mercadoria. Veremos na parte final deste texto.

 

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