Ucrânia, Rússia e a importância das perguntas
Traducción de los compas de Amanajé publicada aquí
Introdução de Amanajé
Na noite de 23 de fevereiro, após semanas de tensão, a Rússia iniciou uma ampla invasão na Ucrânia. A nossa posição a respeito desse conflito, enquanto internacionalistas revolucionários, enquanto anarquistas e comunistas, é clara: não apoiamos a mobilização de nossa classe como bucha de canhão nos joguetes interimperialistas, não apoiamos nenhuma guerra a não ser a guerra de classes, terreno no qual defendemos verdadeiramente nossos interesses enquanto classe.
Desde o início dessa tensão, já podíamos ver a mobilização ideológica da burguesia para justificar cada lado: num lado estavam os «defensores da democracia, da soberania nacional, da paz» e do outro aqueles que queriam destruir tudo isso; por outro lado, também havia o discurso de «Putin anti-imperialista», «Putin antifascista» (ignorando ou mascarando o apoio militar russo na repressão das greves no Cazaquistão). A farsa de equiparar todo o proletariado ucraniano às células neonazistas presentes na região é evidente, mas ainda assim vemos essas mentiras sendo repetidas por aí (inclusive pelos dois lados). O objetivo é sempre o mesmo: nos fazer aderir à uma fração burguesa contra a outra, justificar a guerra contra o inimigo dessa fração, justificar nossa ida ao matadouro da guerra interimperialista.
A posição verdadeiramente revolucionária nega esse apelo à guerra entre nações, opondo à ela a guerra de classes, a guerra contra «nossa» burguesia, «nosso» Estado, o derrotismo revolucionário e a fraternização entre soldados contra seus senhores. Essa posição já havia sido formulada por anarquistas anteriormente, por exemplo Malatesta alguns meses antes da Primeira Guerra Mundial:
Logo a conclusão é que, para um anarquista, o inimigo primeiro é o opressor que lhe está mais perto, e contra o qual pode lutar com maior eficácia. Para um anarquista italiano, e em geral para cada trabalhador italiano que aspira à emancipação sua e dos seus companheiros, importa sobretudo combater o governo de Itália e os patrões de Itália, isto é, aqueles que se dizem nossos connazionali e nossos compatriotas, e em nome da nação e da pátria gostariam de nos fazer aceitar docilmente o seu domínio. É esta a conclusão a que queriam chegar? Se sim, estamos de acordo (link para o texto completo).
Também podemos achar formulações completamente atuais em outros textos que se opunham à guerra, como o Manifesto contra a guerra (1915):
«O refinamento contínuo dos materiais de guerra, cada mente e cada vontade se mantém constantemente voltada para uma organização cada vez melhor do aparato militar – este dificilmente é o caminho para a paz.
Portanto, é ingênuo e pueril, uma vez multiplicadas as causas e as ocasiões de conflito, tentar definir o grau de culpa ligado a tal e tal governo. Não é possível fazer distinção entre guerras ofensivas e guerras defensivas. […]
Não importa onde eles se encontrem, o papel dos anarquistas na tragédia atual é continuar proclamando que existe apenas uma guerra de libertação: aquela travada em cada país pelos oprimidos contra o opressor, pelos explorados contra o explorador. Nossa tarefa é convocar os escravos à revolta contra seus senhores» (texto completo aqui).
Dessa forma, para nós, a única ação coerente com os interesses do proletariado é a denúncia da guerra e a sabotagem de qualquer tentativa de fomento e apoio à guerra realizada por «nossa» burguesia e «nosso» Estado. Por isso, decidimos pela tradução e divulgação de dois textos que sentimos abordarem essa posição no recente conflito entre as potências imperialistas no leste europeu.
Ucrânia, Rússia e a importância das perguntas
Como em qualquer conflito entre estados capitalistas, o debate ideológico e a propaganda giram em torno do direito e da soberania nacional. Se a Rússia tem o direito de reivindicar seu espaço de segurança, se a Ucrânia é um país soberano para decidir suas alianças, se é justo e legítimo que os Estados Unidos ampliem as fronteiras da OTAN, se a União Europeia tem que manter uma autonomia estratégica, se é que a própria burguesia europeia entende o que isso significa.
Mas tão importante quanto a resposta é o terreno em que se situa a pergunta. E todas as questões acima se encontram num terreno burguês, aquele que nos faz acabar apoiando um Estado capitalista contra outro, contra os princípios básicos do internacionalismo e da autonomia de classe que definiram historicamente o movimento proletário.
Porque o que está em jogo no atual conflito entre a Rússia e a OTAN é a partilha da nossa exploração e o domínio do território. O desenvolvimento do capitalismo implica, por um lado, a contradição entre a necessidade de explorar o trabalho e a necessidade de expulsá-lo com novas tecnologias, o que o introduz em uma crise econômica perene de esgotamento de seu próprio mecanismo de produção de riqueza nos limites da mercadoria. Por outro lado, este mesmo desenvolvimento torna cada vez mais duvidosa a capacidade de uma potência capitalista de manter sua hegemonia sobre o resto, ou mesmo sobre um bloco estável e robusto, ao mesmo tempo em que pressiona os diferentes países a competirem entre si para se tornarem potências regionais. O resultado não é, como às vezes é dito, a tendência para a substituição dos EUA pela China na gendarmeria[1] global, mas a fragmentação geopolítica das diferentes potências para garantir seu controle sobre a região.
Este é o esforço que a Rússia está fazendo para se opor aos EUA e à OTAN no atual conflito com a Ucrânia. Os EUA estão tendo cada vez mais dificuldade de manter sua hegemonia global, como demonstra sua retirada do Afeganistão. Tem, de fato, cada vez mais dificuldade em manter o controle de seu próprio território, afetado por uma polarização social que nem mesmo os tambores de guerra estão conseguindo, pelo menos atualmente, manter suturada [remendada]. Por sua vez, a Rússia está exercendo seu controle imperialista sobre os Estados que a cercam para garantir a si mesma um «distanciamento estratégico» – um cinturão de Estados-almofada para amortecer militarmente suas próprias pretensões de potência hegemônica – mesmo que seja às custas da repressão sangrenta do proletariado, como visto em sua intervenção militar para esmagar as revoltas no Cazaquistão [como pode ser visto aqui]. A União Europeia, esse conglomerado de antigas potências em busca da glória perdida e sem capacidade de conjugar uma política econômica e militar própria, foi apanhada no choque de trens: a Alemanha dividida entre sua dependência energética do gasoduto russo e sua aliança com os EUA, a França frustrada por suas tentativas de varrer para debaixo do tapete sua derrota em Mali, liderando a diplomacia europeia autonomamente dos EUA, cujo final tragicômico foi o fracasso das negociações entre Putin e Biden com a chegada dos tanques russos em Donbass.
A guerra é parte da natureza do capitalismo, e da natureza de cada Estado-nação. Neste sentido, cada Estado é imperialista: sejam os EUA, a Rússia ou a Ucrânia, cada Estado tenta alinhar o proletariado por trás de sua própria burguesia para servir de bucha de canhão na guerra imperialista. O resultado do atual aumento de tensão e da entrada das tropas russas na Ucrânia oriental foi, mais uma vez, a exacerbação do nacionalismo ucraniano e pró-ocidental de um lado, pró-russo do outro, o que serve apenas para esconder a natureza de classe deste conflito sob os slogans de democracia, soberania e direito internacional.
Esse não é o nosso terreno. Nosso terreno é o da defesa dos interesses de classe por fora e contra todos os interesses nacionais e imperialistas. A única maneira de entender o conflito atual na Ucrânia é através dos princípios básicos do derrotismo revolucionário: unidade de classe através de todas as fronteiras, guerra de classes contra a própria burguesia, revolução proletária mundial.